O QUE FAZER COM AS NATIONAL GEOGRAPHIC ANTIGAS? EIS UMA IDEIA DIGNA DE UM ROMANCE.

As pessoas usam edições antigas da National Geographic para tudo, desde colagens a papel de parede improvisado ou para encher estantes. A escritora Tara Conklin (TC) comprou uma pilha de revistas numa loja da Goodwill e deu-lhes outro uso – tornaram-se a lombada amarela e poeirenta do seu último romance.

No livro de Conkin, "Community Board", a personagem principal afasta-se de um casamento implodido e refugia-se na antiga casa dos seus pais, numa pequena vila, devorando comida enlatada no sofá e procurando consolo num mundo bem retratado de vermes de crina de cavalo criadores de zombies, navios vikings cheios de mel e o famoso poeta Pablo Neruda.

“Parece que muitas pessoas cresceram com estas lombadas amarelas nas estantes dos seus pais / avós”, diz-nos Conklin, leitora de longa data da National Geographic (NG).

Saiba como Conklin tropeçou nestas revistas – e o que elas acrescentaram a uma comédia de costumes sobre a ideia mutável de “lar”.

NG: O que lhe passou pela cabeça para usar revistas da National Geographic como instrumento narrativo?

TC: No primeiro terço do livro, a minha protagonista, Darcy Clipper, está isolada na sua casa de infância na região ocidental do Massachusetts. É o pico do Inverno, o marido acaba de deixá-la, ela perdeu o emprego, não gosta de nenhum dos seus amigos, está zangada com os pais e voltou para um sítio seguro para repensar as suas escolhas de vida. Ao imaginar o aspecto de uma casa de infância – aquele local de retorno – coloquei instintivamente uma pilha de revistas National Geographic algures na casa. Aquelas lombadas amarelas estariam arrumadas numa estante, nas profundezas de um armário ou, convenientemente, na casa de banho. Possivelmente um pouco empoeiradas, definitivamente com dobras a servir de marcador, páginas amachucadas e etiquetas com a morada a descolarem-se da capa. Os meus pais tinham uma pilha, os meus avós tinham uma pilha e agora eu também tenho uma pilha.

"Ao imaginar o aspecto de uma casa de infância – aquele local de retorno – coloquei instintivamente uma pilha de revistas National Geographic algures na casa. "

Quando pus esse pormenor dentro da casa, soube que teria de usá-las. Um dos desafios narrativos do livro era impedir que a primeira parte da história de Darcy se tornasse demasiado claustrofóbica. Ela passa o Inverno enfiada em casa, a comer comida enlatada e inventar teorias da conspiração sobre os vizinhos – e isso pode tornar-se entediante muito depressa. As revistas deram-lhe (e aos leitores) um escape para fora de casa, da sua própria cabeça, permitindo-lhe explorar algumas ideias evocadas pelo livro.

Sendo eu uma leitora de longa data da National Geographic, foi muito divertido ver aquelas edições antigas e descobrir reportagens que se enquadrassem no romance. Para mim, enquanto criança (e até agora), as revistas da National Geographic sempre me fizeram sair de mim própria e partir numa aventura fabulosa, até locais que eu nunca vira ou coisas nas quais nunca pensara.

Depois da separação, Darcy está completamente focada no seu próprio umbigo. Está totalmente isolada, não fala com os amigos, nem com a família, não sai de casa – resumindo, decidiu que as ligações humanas não valem o trabalho que dão. Para fazer avançar a narrativa, precisava de algo que abanasse Darcy, que lhe desse espaço para pensar no mundo fora da sua própria casa. As revistas cumpriram magnificamente esse efeito. Ao ler sobre outras vidas e outros dramas, ela consegue levar-se menos a sério e aperceber-se de que a vida continua a acontecer à sua volta e que precisa de sair mais.

O romance lida tematicamente com a noção de comunidade – aquilo que recebemos dela, aquilo que devemos à nossa comunidade, como a vemos, etc. Pode soar um pouco sentimental, mas a essência da tradição da National Geographic parece colocar-nos a todos numa grande comunidade humana. Podemos estar sentados no nosso sofá, em casa, no Massachusetts, quando abrimos as suas páginas para ler a história de uma família da China rural prestes a perder a sua casa por causa do projecto da represa Three Gorges (National Geographic de Setembro de 1997). E sentimos as suas dores. Ou interrogamo-nos sobre o que faríamos naquela situação. Ou lembramo-nos de uma grande perda na nossa própria vida. Toda essa experiência humana contém os mesmos elementos essenciais – amor, lar, família, perda – e acho que é importante lembrarmo-nos da sua universalidade.

"A essência da tradição da National Geographic parece colocar-nos a todos numa grande comunidade humana."

NG: Houve outros artigos da National Geographic que se destacaram?

TC: Sim, muitos, demasiados! Identifiquei e tomei nota de outras reportagens que pudesse usar num romance. E é claro que a inspiração é uma coisa complexa. Por exemplo, uma citação do poeta chileno Pablo Neruda acaba por desempenhar um grande papel na evolução de Darcy enquanto personagem. No livro, ela encontra a citação num artigo da National Geographic e começa a usá-la como uma espécie de mantra para si própria. Os acontecimentos que levaram Neruda a aparecer no livro não foram assim tão simples. Li um artigo de viagens da National Geographic sobre o deserto de Atacama, no Chile, que fazia uma brevíssima referência a Neruda, mas isso foi suficiente para me encaminhar para a sua poesia e as suas perspectivas do amor e da vida. Tenho alguns livros antigos de poesia de Neruda, por isso fui buscá-los e comecei a ler. Sei que o seu legado se tornou complicado, mas encontrei beleza genuína e inspiração na sua linguagem e achei que o mesmo iria acontecer a Darcy. As frases que cito no romance vieram do discurso de agradecimento de Neruda quando recebeu o Prémio Nobel em 1971: “Não há solidão inexpugnável. Todos os caminhos levam ao mesmo ponto: à comunicação daquilo que somos. E é preciso atravessar a solidão e a aspereza, a incomunicabilidade e o silêncio para chegar ao recinto mágico no qual podemos dançar desajeitadamente ou cantar com melancolia, mas nessa dança ou nessa canção estão consumados os mais antigos ritos da consciência: da consciência de sermos homens e de acreditarmos num destino comum.”

Esta ideia – de que todas as vidas estão interligadas – é particularmente relevante no livro, por isso decidi inventar um tema de capa da National Geographic, especificamente sobre Neruda, e usar estas palavras no romance. Foram a inspiração perfeita para ajudar Darcy a sair de casa, a ultrapassar os seus próprios problemas pessoais e a reintegrar-se na sua comunidade.

"Li um artigo de viagens da National Geographic sobre o deserto de Atacama, no Chile, que fazia uma brevíssima referência a[O ESCRITOR] Neruda, mas isso foi suficiente para me encaminhar para a sua poesia e as suas perspectivas do amor e da vida."

Também fui inspirada pela edição de Janeiro de 2001, dedicada a “O Corpo no Espaço: Sobrevivendo à Odisseia” e que inclui um desdobrável sobre Valery Polyakov, o cosmonauta russo que estabeleceu o recorde do mais longo período no espaço – 437 dias. Embora Darcy não passe nenhum tempo no espaço sideral, permaneceu isolada durante grande parte do Inverno. A experiência de Polyakov mexe com ela. No livro, ela imagina a conversa privada que ele teve com a sua mulher, Nelly, depois de regressar. Ambos sofreram durante aquele período de isolamento extremo — Valery em órbita, Nelly sozinha na Terra com os filhos pequenos – e Darcy começa a sentir falta das ligações humanas, apesar de todo o trabalho e confusões.

NG: Quando penso nos leitores da National Geographic, pelo menos naqueles que falam connosco por mail, penso em frases como as que usou nos seus agradecimentos, sobre as pessoas que são a pedra e a cal da democracia. Existe ali alguma esperança de que a disponibilidade de melhor informação possa conduzir a melhores decisões, não? 

TC: Sim. Quis mesmo transmitir um sentimento de esperança no final do romance! Acho que, em última análise, essa é a essência da comunidade – juntarmo-nos enquanto indivíduos para melhorarmos as coisas para o todo. Esse objectivo final exige fé no processo, muito dar e receber, cedências de compromisso, ajuste de interesses, mas quis que Darcy experienciasse esses fundamentos da democracia através da assembleia municipal da sua vila. Cresci em New England, numa aldeia semelhante à fictícia Murbridge, onde os problemas da comunidade eram discutidos democraticamente, numa reunião municipal à moda antiga.

Acho que o acesso a melhor informação pode ajudar-nos a tomar melhores decisões em ambientes de grupo como este, mas também pode fazer-nos regressar a um nível mais primordial: quanto maior for a participação, melhores poderão ser as decisões. Uma das personagens secundárias do romance é Hildegard Hyman — uma mulher intemporal, sempre com o seu casaco de malha, que é voluntária para todo o serviço, organizadora, decisora, a pessoa que faz as coisas acontecer. No clímax do livro, ela incita os residentes da vila a comparecerem, a fazerem o trabalho de governar vila porque, de outro modo, acabarão por ficar com um sítio que não é o seu.

"Acho que o acesso a melhor informação pode ajudar-nos a tomar melhores decisões em ambientes de grupo como este, mas também pode fazer-nos regressar a um nível mais primordial: quanto maior for a participação, melhores poderão ser as decisões."

E é precisamente aí que a esperança entra em cena (espero!): queremos sentir-nos seguros e valorizados nas nossas comunidades, queremos que elas reflictam os nossos ideais e planeiem o futuro dos nossos filhos e podemos alcançar todos esses objectivos através do simples acto de comparecermos e participarmos. É uma ideia simples, sim, mas acho mesmo que, nesta época de desilusão com a política e o governo, é uma ideia importante e que merece ser recordada.

NG: Uma coisa que sobressai no seu romance é que parece haver falta de informação de qualidade nessas vilas. Por isso, os boatos começam a circular, frequentemente através dos murais comunitários, que funcionam de forma semelhante às publicações que podemos encontrar na Internet. Outra é que as pessoas anseiam, aparentemente, por uma ligação, através desses murais digitais. Acha que isso acontece na vida real?

TC: Acho que um dos problemas desses murais (e das “notícias” online em geral) é que a informação de boa qualidade é indiscriminadamente misturada com a informação de má qualidade e acaba por caber ao leitor distingui-las. Uma informação desvalorizada por um leitor é considerada credível por outro e isso diz, frequentemente, mais sobre os indivíduos envolvidos do que sobre a qualidade objectiva da própria informação. É por isso que acho estes murais tão fascinantes – ficamos com uma ideia de todas estas personalidades diferentes, dos seus preconceitos, das suas fraquezas, dos seus defeitos, mas também da sua generosidade, amabilidade e preocupação. E as pessoas que os usam, ignoram completamente aquilo que estão a revelar sobre si próprias através daqueles comentários aparentemente inócuos. Existe uma certa honestidade e transparência inadvertida nestes murais, que raramente ocorre em comunicações cara-a-cara.

"Uma informação desvalorizada por um leitor é considerada credível por outro e isso diz, frequentemente, mais sobre os indivíduos envolvidos do que sobre a qualidade objectiva da própria informação."

Vemos um imenso privilégio ao lado de necessidades verdadeiramente essenciais. Vemos racismo casual ao lado de ideias muito liberais e com tendências de esquerda. Vemos a comunidade ao lado da solidão. Os boatos ganham vida própria nestes murais, mas até a disseminação de informação má pode trazer à superfície uma verdade subjacente sobre os indivíduos e a sua comunidade.

E isso leva-nos ao nosso segundo ponto: a ligação. Sim, as pessoas anseiam por uma ligação! Sobretudo na era pós-COVID, depois da quarentena, do medo e da doença, acho que todos ansiamos novamente pelo contacto humano. Mas é claro que também existe alguma hesitação. Darcy espelha-o no romance, depois de começar a trabalhar para o seu vizinho, Marcus, e sair da sua casa de infância. Ela sofre de uma ansiedade social bastante debilitante e Mark ajuda-a a voltar a relacionar-se com as pessoas. A interacção virtual – seja através do Zoom, do Facebook ou de um mural comunitário – é muito mais fácil do que a interacção cara-a-cara. Obtêm-se alguns benefícios da comunidade sem alguns dos seus problemas. No final, porém, as ligações virtuais só conseguem levar-nos até determinado ponto. Talvez isto seja antiquado – mas ainda acredito que sentarmo-nos com alguém para conversar pessoalmente é a única forma de estabelecermos ligações de verdade.

"Talvez isto seja antiquado – mas ainda acredito que sentarmo-nos com alguém para conversar pessoalmente é a única forma de estabelecermos ligações de verdade."

Tara Conklin é a autora de best-sellers como "The Last Romantics" e "The House Girl". David Beard é director de newsletters na National Geographic.

Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.

2024-03-01T01:05:37Z dg43tfdfdgfd